segunda-feira, 24 de maio de 2010

Jose Caroso Pires, "O Delfim"


José Cardoso Pires, com toda a sua complexidade e com toda a sua beleza é um caminho estranhamento rico e inovador na literatura Portuguesa, vale a pena descobri-lo...



«Só agora, dezoito horas catorze minutos, chegam os jornais da tarde, e faço votos que com notícias de bom tempo. Oxalá. Para honra e glória do melhor ganso da época, é indispensável que a criadita me traga um bom Diário de Lisboa ou um bom Diário Popular que não me falem de chuva nem vento forte e ainda menos de trovoada.
(…)
Estendo-me na cama a ler o jornal.
(…)
Este, em particular, vem exausto. Mensageiro maltratado mas convencido (em artigos de fundo e notas do dia) do seu Valiosíssimo Papel de Órgão de Informação nas Estruturas Nacionais, chegou à Gafeira muito composto de bom senso e com a autoridade de ter preenchido as vinte e quatro páginas que lhe competem. Chegou cansado; sem voz, pode dizer-se. Abre-se e pouco adianta, a não ser para os desconfiados leitores das entrelinhas. Mas, vá lá, mal ou bem sempre faz um prometedor boletim meteorológico. Esperemos que não falhe. Que, ao menos, não seja tão desastrado como certas previsões da NASA – lembro-me eu, deparando com a fotografia de Edwin Aldrin a sorrir a duas colunas na primeira página.
UM LAVRADOR FESTEJOU O NASCIMENTO DE UM FILHO VARÃO
Beja, 30 – Mais de 500 convidados festejaram no Monte de Santa Eulália, propriedade do Sr. Patrício Melchior, o nascimento do primeiro filho varão daquele lavrador.
Consumiram-se, entre outras iguarias, doze perus, vinte e quatro cabritos, quinze leitões, trinta e um frangos e cem quilos de borrego. Beberam-se cem litros de vinho, quatrocentas cervejas, duzentas garrafas de whisky…
… e isto, parecendo que não, é um desafio ao sorriso de Edwin Aldrin. Ri-te cosmonauta inacessível, das vitórias que se ganham cá em baixo, e não te espantes. Conheço, meã culpa, vários cidadãos de lavoura-e-cabaré capazes de pensar como o nosso lavrador e, aqui entre nós, nem reparo. Sei como é fundo neles, e constante, e magoado, o sonho de fazerem um homem à sua maneira, ensinando-lhe o mundo e mulheres. Desejo-lhes, portanto: Salute ed figli maschi – que é como brindam (diz-se) os napolitanos legítimos.
Edwin Aldrin encara-me: Com os seus lábios brancos de americano engarrafado em aço. Está cheio de guerra e de publicidade, mas é um cosmonauta – nunca esquecer. É um homem confiante nos milagres que os outros homens vão descobrindo porque se põem à prova neles, e nessa qualidade merecer tudo, quer se chame Edwin, Gagarine ou tenha o nome de código de Major Alfa Zero.
(…)
Um homem que confia, um cosmonauta, leva fios invisíveis de humanidade em esfuziante propulsão. Com ele viaja o nosso velho universo – com lábios assim tão gelados e com escafandros tão tenebrosos. Sinceramente. Falo com a mão na consciência, porque, modéstia à parte, muitos dos meus avós portugueses também foram bons cientistas de descobrir mundo. Excelentes, não exagero.
(…)
Outra vez o sorriso branco: Enquanto as moscas passeiam, o caminhante do espaço permanece suspenso na primeira página do meu jornal. Se lhe descrevessem as fabulosas aventuras dos portugueses que foram, antes dele, navegadores do impossível, talvez não acreditasse.
Também, pouco adiantaria que acreditasse ou não. Acenar com os padrões dos nossos descobridores como resposta às façanhas de um cosmonauta é o argumento dos olvidados, e já enjoa. Estamos fartos de ouvir nos discursos de academia e nas crónicas oficiais. Aldrin nunca teria tempo para isso. Anda excessivamente atarefado com o futuro para poder dar atenção aos desprezados dos século XX…»

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