terça-feira, 23 de março de 2010

Poema em linha recta


(Com uma dedicatória muito especial artista...)

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."


Álvaro de Campos

quarta-feira, 17 de março de 2010

Socialismo e Direitos Humanos


Quando Marx olhou a sociedade e pensou uma forma de organização política, económica e social alternativa, fê-lo porque constatou que o homem vivia na miséria, fruto da exploração e da opressão a que o capitalismo o submetia. Essa preocupação humana foi condição essencial do seu pensamento, e a esquerda anti-capitalista moderna, não pode aceitar que em nome do socialismo se pratiquem verdadeiros atentados aos Direitos Humanos. Isso é paradoxal, porque socialismo e Direitos Humanos são conceitos quase siameses.

Cuba, um dos poucos Estados que ainda tem a ousadia de se auto-caracterizar socialista, faz uso de uma retórica anti-guerra, anti-imperialismo e pelos Direitos Humanos. Advoga toda essa malha discursiva com a teoria anti-império (legitima por si só, mas não legitimadora de tudo). A Esquerda anti-capitalista tem de perceber que existem precedentes, que para lá de um discurso floreado existe toda uma organização política que se afastou no ideário humanista que Marx protagonizou.

Em Cuba não existe liberdade de expressão, de associação e de crítica. É um facto incontornável. Em pleno século XXI, é inconcebível que um Estado se caracterize de Socialista e utilize os seus órgãos repressivos para prender e deter quem pensa de maneira diferente. O império faz isso com a teoria “pensamento único” de forma encapotada, e também ai a Esquerda tem uma palavra a dizer e um ponto de exclamação a acrescentar. Porque superioridade da Esquerda mede-se pelos seus valores.

Um partido de esquerda socialista tem de olhar para os cerca de duzentos presos políticos, para a morte de Tamayo (e a repressão pós morte), para a repressão sobre os movimentos feministas, para os desaparecimentos (presumivelmente mortes) dos líderes de oposição, para o exílio de Cubanos críticos, e para os milhares que morrem na travessia, e perceber que esse é um caminho por onde não queremos ir.

Sem direitos humanos não há alternativa socialista. Quando há uns tempos li o “Conta-me coisas de Cuba”, de Jesus Diaz percebi que a questão Cubana era mais complexa do que se pensa. O autor não é propriamente de fiar, mas a análise é séria. A história da personagem que ele cria podia ser a história de qualquer Cubano, oprimido no seu país que acabou perdido no mar entre dois países e duas realidades concepcionais…

É verdade que Cuba é segregada e que o seu povo é brutalmente desrespeitado. Que existe uma ofensiva brutal sobre a sua economia. Mas isso não desculpa por si só, que o regime ignore os Direitos Humanos. Que, no fundo, deviam ser a pedra angular de qualquer regime socialista.

João Nuno Mineiro


em: http://www.acomuna.net/content/view/345/1/

toda a clarividência...